XV Exame de Ordem Unificado (Civil). Comentários à peça profissional

XV Exame de Ordem Unificado (Civil)
Comentários à peça profissional

1. Introdução

                No último dia 11 de janeiro de 2015 a OAB aplicou a prova de 2ª fase do XV Exame de Ordem Unificado.

                Como habitualmente faço, disponibilizo alguns comentários à prova da área de Direito Civil, que – assim espero – ajudem não apenas aliviar a ansiedade daqueles que fizeram a prova, mas também nos estudos daqueles que a farão futuramente.

                Meus comentários são, na maior parte das vezes, fruto de um brainstorm, motivo pelo qual qualquer comentário será bem-vindo, assim como tentarei responder eventuais indagações que sejam feitas.

2. Enunciado da prova

                João utiliza todos os dias, para retornar do trabalho para sua casa, no Rio de Janeiro, o ônibus da linha “A”, operado por Ômega Transportes Rodoviários Ltda. Certo dia, o ônibus em que João era passageiro colidiu frontalmente com uma árvore. A perícia concluiu que o acidente foi provocado pelo motorista da sociedade empresária, que dirigia embriagado. Diante disso, João propôs ação de indenização por danos materiais e morais em face de Ômega Transportes Rodoviários Ltda. O Juiz julgou procedentes os pedidos para condenar a ré a pagar a João a quantia de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), a título de danos materiais, e mais R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais) para compensar os danos morais sofridos. Na fase de cumprimento de sentença, constatada a insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, o Juiz deferiu o pedido de desconsideração da personalidade jurídica, procedendo à penhora, que recaiu sobre o patrimônio dos sócios Y e Z. Diante disso, os sócios de Ômega Transportes Rodoviários Ltda. interpuseram agravo de instrumento, ao qual o Tribunal de Justiça, por unanimidade, deu provimento para reformar a decisão interlocutória e indeferir o requerimento, com fundamento nos artigos 2º e 28 do CDC (Lei nº 8.078/90), por não haver prova da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial. O acórdão foi disponibilizado no DJe em 05/05/2014 (segunda-feira), considerando-se publicado no dia 06/05/2014. Inconformado com o teor do acórdão no agravo de instrumento proferido pelo TJ/RJ, João pede a você, na qualidade de advogado, a adoção das providências cabíveis. Sendo assim, redija o recurso cabível (excluída a hipótese de embargos de declaração), no último dia do prazo, tendo por premissa que todas as datas acima indicadas são dias úteis, assim como o último dia para interposição do recurso.

3. Comentários gerais

                De antemão, nota-se que a peça cobrada (recurso especial) é pouco comum nos exames da OAB, fato que pode ter surpreendido muita gente.

                Em que pese a “surpresa”, a verdade é que a questão colocada, sobretudo no que se refere ao direito material subjacente, não é de elevada dificuldade.

                O cabimento do recurso especial se justifica pelas seguintes razões:

                (i) a parte pretende interpor um recurso (que não sejam os embargos de declaração) por não se conformar com acórdão proferido pelo TJRJ (em votação unânime);

                (ii) o caso trata da (in)correta aplicação de lei federal (Código de Defesa do Consumidor), mais especificamente a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica em relação de consumo (arts. 2º e 28 do CDC); em outras palavras, não existe temática constitucional (o que poderia levar a um recurso extraordinário), mas meramente infraconstitucional;

                (iii) trata-se de uma decisão de última instância, pois a lei não prevê nenhum outro recurso contra tal decisão (note que o enunciado exclui os embargos de declaração);

                (iv) Ocorreu o chamado “prequestionamento”, assim entendida a expressa manifestação do tribunal acerca do tema objeto do recurso (“causa decidida”), em que pese toda celeuma que envolve esta questão.

                (v) a decisão é da lavra de um tribunal (TJRJ);

                (vi) não existe questão fática a ser analisada no recurso, mas apenas questão de direito (aplicação da norma a fatos incontroversos), de modo que não incide o enunciado de súmula n. 07 do STJ.

                Assim sendo, cabe recurso especial, cuja competência para julgamento é do STJ, conforme a previsão do art. 105, III, a, da Constituição:

“Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
(...)

III - julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida:

a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência; (...)”

                O recurso deve ser apresentado em duas peças: uma de interposição (dirigida ao órgão a quo) e outra com as razões recursais, conforme modelo básico que apresento a seguir.

4. Modelo sugerido

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO EGRÉGIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO.
Observação: sobre interposição e endereçamento, ver art. 541 do CPC.


Agravo de instrumento ...


                João, já qualificado nos autos em epígrafe no qual litigam com Y e Z, também qualificados, vem respeitosamente à presença de Vossa Excelência, por seu advogado ao final assinado, interpor, conforme art. 105, III, a, da Constituição; e arts. 541 e seguintes do CPC, RECURSO ESPECIAL, conforme as razões anexas.

                Comprova, ao final, o recolhimento do preparo e do porte de remessa e retorno dos autos, conforme art. 511 do CPC.

                Assim, requer se digne Vossa Excelência determinar a intimação da parte recorrida, facultando-lhe a apresentação de suas contrarrazões no prazo legal, sob pena de preclusão, consoante o art. 542 do CPC.

                Ao final, diante do preenchimento satisfatório de todos os requisitos de admissibilidade, requer se digne Vossa Excelência determinar a remessa dos autos ao Egrégio Superior Tribunal de Justiça, para apreciação das matérias de direito objetivo ventiladas.


                                       Nestes termos,
                                       Pede deferimento.
                                       Local, 21 de maio de 2014.

Observação: em regra, não se deve, nos exames da OAB, indicar a data. Mas note que o enunciado exige que o recurso seja interposto no último dia do prazo. Considerando as datas de disponibilização e publicação fornecidas, conclui-se que o prazo se esgota em 21 de maio de 2014.


Nome do advogado
Inscrição na OAB




RAZÕES DE RECURSO ESPECIAL


                Recorrente: João.


                Recorridos: Y e Z.
         Observação: independentemente dos sócios serem parte ou terceiro na ação (conforme entendimento do STJ, na desconsideração da personalidade jurídica os sócios ingressam na ação como “parte”), eles sem dúvida são recorridos (até porque poderiam recorrer como terceiros).


                Origem: Agravo de instrumento ... da ... Câmara ... do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

EGRÉGIO TRIBUNAL,
COLENDA TURMA,
NOBRES MINISTROS.

                Insurge-se o presente recurso especial contra o acórdão do TJRJ que por unanimidade deu provimento ao agravo de instrumento dos recorridos para reformar a decisão interlocutória e indeferir o requerimento de desconsideração da personalidade jurídica da sociedade empresária devedora, com fundamento nos artigos 2º e 28 do CDC, por não haver prova da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial.

                A decisão em exame, data venia, incorre em error in judicando, pois contraria a lei federal, mais especificamente os arts. 2º e 28 do CDC, justificando o manejo deste recurso, especialmente por se tratar de uma decisão de última instância emanada de tribunal de estado da federação (TJRJ), devidamente prequestionada por haver expressa manifestação do tribunal a quo acerca da quaestio juris, envolvendo exclusivamente questão fática.
Observação: perceba que o art. 541, II, do CPC, exige a demonstração do cabimento do recurso.

                Com efeito, argumenta-se na decisão recorrida que o requerimento de desconsideração da personalidade jurídica deve ser indeferido por não haver prova da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial.

                Ocorre, todavia, que a relação em apreço é de consumo, à qual se aplica o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), sendo incontroverso que o recorrente é destinatário final do serviço prestado pela pessoa jurídica, conforme art. 2º do CDC.

                Sendo a relação de consumo, é irrelevante inexistir prova de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial, porque estes requisitos se referem à desconsideração nas relações civis em geral (art. 50 do Código Civil). Nesses casos, de fato, exige-se, para além da prova de insolvência, ou a demonstração de desvio de finalidade (teoria subjetiva da desconsideração), ou a demonstração de confusão patrimonial (teoria objetiva da desconsideração).

                Mas no caso em tela, repita-se, tem-se uma relação de consumo, sujeita ao CDC. Destarte, aplica-se a regra específica prevista no art. 28 deste diploma legal, segundo a qual:

“Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

                Deve-se atentar, igualmente, ao § 5º do mesmo art. 28, onde se lê:

“§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

                A conclusão a que se chega, pela leitura dos dispositivos legais citados, é que nas relações de consumo se aplica a “teoria menor” da desconsideração, que, ao contrário das relações civis em geral, ocorrerá com a mera prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial.

                Para a teoria menor, o risco empresarial normal às atividades econômicas não pode ser suportado pelo consumidor que contratou com a pessoa jurídica, mas pelos sócios e/ou administradores desta, mesmo que não exista qualquer prova capaz de identificar conduta culposa ou dolosa por parte destes, livrando de obstáculos o ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

                Deste modo, o acórdão recorrido contrariou frontalmente não apenas o art. 2º do CDC, ao desconsiderar a qualidade de consumidor do recorrente, mas especialmente o art. 28 da mesma lei, ao não aplica-la sob o enfoque da teoria menor da desconsideração, exigindo requisitos não previstos em lei para sua aplicação.

                        Por tudo que se articulou, requer se dignem Vossas Excelências conhecerem do presente recurso para, ao final, dar-lhe provimento, reformando-se o acórdão do TJRJ para deferir o pedido de desconsideração da personalidade jurídica da empresa Ômega Transportes Rodoviários Ltda., de tal modo que o cumprimento de sentença alcance o patrimônio pessoal dos sócios, ora recorridos.

                                       Nestes termos,
                                       Pede deferimento.
                                       Local, 21 de maio de 2014.



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